DEPOIS DE AMANHÃ
- Madame Pagu
- 8 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de set.

Ela girou entre os dedos as moedas que o rapaz da farmácia lhe deu como troco antes de guardá-las na carteira. O rapaz tinha aquele sorriso metálico de vendedor, olhando para ela por cima dos óculos engordurados. Ela pegou a sacolinha que ele lhe estendeu, como se carregasse cimento. Alguns dias antes ela não se imaginaria na mesma situação. Abriu a sacola e conferiu seu conteúdo. Olhou para o rapaz que ainda sorria e, por um momento, ele pode ver o vazio que comia o corpo dela: uma espécie de fome ou de dor, ela não sabia bem.
Deixou a farmácia e respirou o ar puro da rua movimentada e se perguntou de onde vinha sua calma, mas não encontrou qualquer resposta. Caminhou devagar pela calçada, reparando em cada pedra do chão.
Parou em um bar e pediu um café. Sentou-se numa mesa perto da janela. Ela não sabia como a vida a tinha levado até ali. E, de qualquer forma, isso não tinha a menor importância agora. De dentro da sacola tirou uma das caixas e de dentro da caixa, uma das lâminas prateadas com pílulas mágicas coloridas. Consultou o relógio, mas ainda era cedo demais. Pensou em ler a bula, mas não estava com seus óculos.
As pessoas que passavam na rua e não sabiam de nada. Mas o que tinha para saber? As coisas são assim: acontecem. E ela, que já estava quase nos 50, pensou que não tinha muita história para contar. O tempo tinha cristalizado a sua insignificância.
Um grupo barulhento entrou no bar, pela porta de vidro grosso, rindo alto e veio se sentar na mesa ao lado. Um deles olhou para ela e para a caixa de remédio aberta sobre a mesa. Seus olhos se cruzaram: ele sentia pena. Depois do golpe, ela se resignou. Com certa agilidade, guardou tudo de volta na sacola e consultou de novo o relógio. O rapaz a olhou de novo e, antes que ele pensasse em vir até ela, ela se levantou, abandonou seu café sobre a mesa e saiu do bar.
Ventava um pouco e o céu prometia chuva.
Quando chegou ao seu carro, ela viu um papel no para-brisa: outra multa para pagar. Deu de ombros e entrou no carro, onde estaria protegida do mundo lá fora. Pelo menos nestas duas horas que ainda teria que esperar. E, neste intervalo ela não tinha nenhum lugar para ir. Nenhum amigo para visitar. Nada para comprar. Ninguém com quem conversar.
Na primeira meia hora dentro do carro, arrancou com a ponta dos dentes o esmalte vermelho que a manicure passou com tanto esmero na segunda-feira passada. Ela odiava fazer as unhas no início da semana, mas foi o único horário que encontrou. No rádio tocava Aretha Franklin. Ela sorriu, porque fazia tempo que ela não ouvia música boa. Fazia tempo que ela não ouvia música alguma. E, de repente, ela se sentiu confortada por ter uma trilha sonora para aquele momento de espera. De repente, a música se tornou um alento, uma carinho, um colo. Algo que a afastava daquela situação recheada de promessas de tristeza. Num apertar de olhos, ela pensou que tudo aquilo era um absurdo, que nada daquilo fazia sentido. Olhou para a sacola da farmácia descansando no banco ao lado.
A sacola que respirava o ar calmo que sempre existe antes da guerra.
Pegou novamente a caixa que abrira no bar. A tarja preta gritava, mostrando seu poder, fazendo olhar a beira do abismo. E provavelmente seria assim: um abismo profundo onde se podia voar. Sem cargas. Sem medos. Sem passado e sem futuro. Seria um passeio pelo desconhecido: algumas cápsulas e se partia para o voo.
Mas voar para onde?
Bem, isso não importava agora.
O único objetivo era engolir as cápsulas e partir. Viagem sem destino nenhum.
Ela consultou o relógio no painel do carro. Estava na hora. Ligou o carro e partiu pela estrada, pensando em quantas outras vezes já tinha passado por ali. Talvez alguém até a conhecesse. Ou não.
Parou o carro em frente ao portão branco, cheio de roseiras floridas do lado de dentro. Talvez essa fosse a última vez que passava por ele e caminhava até a porta da sala.
Entrou na casa e jogou sobre o sofá a sua bolsa cheia de mágoas.
Percorreu o corredor devagar.
Sobre a mesa de cabeceira estava uma jarra com água e um copo. Ela abraçou a sacola da farmácia.
“Estava te esperando... sempre apreciei a sua pontualidade.” Disse a mulher sobre a cama.
Ela percebeu que a amiga tinha tirado o lenço que cobria sua cabeça com os dois únicos fios de cabelo que resistiram ao que os outros médicos chamavam de terapia. Sentou-se na cama ao lado da amiga e lhe entregou a sacola da farmácia. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto, enquanto ouviu:
“Agora você pode ir...”
E quando, a contragosto, passava pela porta, da cama, a amiga disse:
“Olha, jamais vou me esquecer de você.”
Ela voltou correndo como fazem as crianças, para beijar a testa da amiga tão querida.
Se levantou e, enquanto caminhava pelo corredor, na sua cabeça, tocava uma canção triste.
A canção coroava a partida da única amiga que já tivera na vida. Depois de amanhã se sentiria ainda mais sozinha.
___________________________________________________________________________ Esse é um texto de Madame Pagu, e é protegido pelas Leis de Direitos Autorais.
Se quiser compartilhar em suas redes,
lembre-se de citar a autora.



Comentários